Quem lucra quando você come produtos que fazem mal à sua saúde?

21.02.17 - Blog do Sakamoto


Blog do Sakamoto

 Um estudo do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar mostra que a proporção de pessoas obesas entre usuários de planos de saúde passou de 12,5%, em 2008, para 17%, em 2015. Não há dados separados apenas para usuários do Sistema Único de Saúde – o que é uma pena porque a crítica que se faz aos planos privados é de que têm uma abordagem que pouco se dedica à promoção e prevenção da saúde e à efetivação do direito humano à alimentação adequada, o que dificulta a abordagem da obesidade.

Antes de tratar desse tema, um pacote de ponderações é necessário. Índice de massa corpórea não é sinônimo de vida saudável – o que passa mais pela opção por comida de verdade, sem a ingestão de ultraprocessados, e atividade física, seja ela qual for. Além disso, a gordofobia tenta impor a pecha de doente ou, pior, de relaxado e inútil, a todas as pessoas que não se encaixam nos padrões estéticos ditados pela indústria da beleza e da medicalização da alimentação. Sim, aprendemos a ser gordofóbicos da mesma forma que somos treinados a outros preconceitos desde pequenos.

Dito isso, tenho problemas quando alguém repudia a discussão sobre a necessidade de rediscutir a publicidade sobre determinado produto que, sendo só aditivos químicos, nem de longe, é alimento. “Se não gosta, é só não comprar, somos obrigados a ouvir em uma defesa distorcida da liberdade individual.

Como se nada nos guiasse para adquirir um produto. Como se não houvesse tantos elementos que incidem na formação do desejo e na tomada de decisão, com tantas propagandas mentindo e omitindo, apelando para a emoção infantil, que eu me pergunto se é possível afirmar, no final das contas, que temos livre-arbítrio para comprar um produto.

Nossas ações são, em muito, determinadas pelo ambiente em que vivemos, as situações das quais compartilhamos, nossos amigos, parentes e colegas de trabalho e do tipo de propaganda que absorvemos diariamente.

Por exemplo, as que dizem que esponjas amarelas crocantes e com gosto artificial de queijo vendidas em pacotinhos são saborosas ou que tornam dois litros de caramelo preto com essências variadas de nozes e extratos vegetais um dos símbolos de nossa era e civilização.

Você acha que tem opção. Mas o que se convencionou chamar de liberdade para consumir é um processo com uma gama muito estreita de opções, fornecida por uma indústria extremamente concentrada na mão de poucos grandes megagrupos transnacionais. E a informação de que existe um mundo lá fora que vá além de esponjas de queijo e ácido carbônico preto é pouco difundida pelos veículos de comunicação. E, quando difundida, ela é inigualavelmente mais chata que os anúncios.

Isso sem falar que furar a “liberdade assistida” tem um custo alto, que a maioria dos brasileiros não pode pagar. Tanto o consumo saudável quanto o consumo consciente são atividades que dependem da renda em uma cidade grande. Quando estou em São Paulo, encomendo semanalmente uma cesta de orgânicos, mas sei que são poucos os que têm recursos para tanto. Ou mesmo acesso – na região mais rica da cidade, é fácil encontrar locais que vendem esses produtos. Nas periferias de grandes cidades brasileiras encontramos desertos alimentares, sem mercados e sacolões para distribuir comida de verdade, restando aos moradores que chegam cansados do trabalho comprar ultraprocessados no quiosque da esquina para alimentar os filhos.

A Organização Mundial da Saúde, em Genebra, decidiu, em 2013, adotar um plano para conter o aumento da obesidade no mundo. Isso inclui questões individuais, como a mudança de hábitos considerados prejudiciais e vinculados ao aparecimento de doenças cardiovasculares, câncer e diabetes: fumar, beber e comer alimentos ricos em substâncias que causa danos ao organismo. Mas, principalmente, ações coletivas responsabilizando o Estado, a sociedade civil e o setor privado para garantir o direito humano à alimentação decente.

A Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou o período entre 2016 e 2025 como a década de ação sobre a nutrição. Não apenas para melhorar a vida de cerca de 800 milhões de pessoas que seguem cronicamente subnutridas e mais de 2 bilhões que sofrem de deficiência de nutriente, mas também para atuar junto a 600 milhões de pessoas obesas – que podem sofrer com a mesma deficiência. Ao contrário do que o senso comum imagina, desnutrição pode atingir magros e gordos.

Por isso, essas ações também envolvem a necessidade de reduzir os níveis de sal, açúcar e gordura em alimentos processados e ultraprocessados, diminuir as porções servidas e, atenção, solicitar um controle maior por parte dos governos quanto à publicidade voltada a crianças.

Mas algumas perguntas precisam ser feitas. Nossa qualidade de vida aumentou ao termos menos tempo para fazer nossas refeições e, consequentemente, optarmos por nos entupir de produtos menos saudáveis, mas mais rápidos? A entrada de classes mais pobres no consumo através de uma avalanche de produtos químicos estranhos em forma de comida alardeados como status social na TV deve ser comemorada? O biscoito recheado é o novo Santo Graal do Brasil contemporâneo?

Apenas com muita dificuldade somos capazes de aprovar regras para anúncios publicitários de produtos que tentam imitar alimentos e enganar o consumidor, simulando sabores, cores, textura. E olha que não estamos falando de proibição, mas sim de informação – coisa que deveria ser fornecida abertamente. Afinal de contas, o consumo em excesso de certas coisas pode trazer riscos à saúde.

Regras assim não agradam as indústrias de refrigerantes, sucos concentrados, salgadinhos, biscoitos, bebidas com muita cafeína e ultraprocessados em geral. Lembremos que a exigência de rotulagem de produtos que contenham transgênicos e a obrigação de estampar que o tabagismo mata nos maços de cigarro também foram alvo de furiosas reclamações por parte de algumas empresas e associações.

Como já disse aqui várias vezes, quando alguma limitação à publicidade de produtos é baixada, há sempre um grupo que brada ser esse ato um atentado à liberdade de expressão. Mas, ao usar essa justificativa, o que acaba defendendo é o direito de ficar em silêncio para não se expor diante da sociedade. O problema é que essa omissão de informações acaba sendo um atentado contra a liberdade de escolha. Não é possível decidir se não há informação suficiente. Vivemos um capitalismo de mentira no qual não querem nos dar todas as informações para tomarmos a melhor decisão.

Colocar isso em prática é difícil. Afinal de contas, uma campanha na TV para dizer “modere” a comidas (sic) como um salgadinho é muito mais chata do que uma peça publicitária usando personagens infantis, piscando na tela tão rápido que, se não convencer a consumir, pode causar um ataque epilético à la Pikachu.

Concordo com qualquer decisão que vá na contramão do consumismo maluco em que a gente se enfiou como civilização e que nos levará para o buraco. Através de objetos, inclusive comida, enlatamos a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco. Porque, como os produtos que a representam, possui sua obsolescência programada para dar, daqui a pouco, mais dinheiro a alguém. Mas isso não vai mudar simplesmente apontando para uma camada da população que nunca teve acesso a nada que, agora, é errado comprar e comer todos os ultraprocessados que a TV aponta como elementos de inclusão social.

A definição do que seja “necessário” pode ser bastante subjetiva, ainda mais que tornamos o excesso parte do dia a dia. É como não saber mais o que é real e o que é fantasia ou, pior, não ter ideia de como escolher entre o caminho irreal da felicidade e a via dura da abstinência.

É uma discussão lenta. E talvez nem tenhamos mais tempo para realiza-la e aplicá-la a fim de evitar uma crise de saúde pública. Mas, de forma ditatorial, de cima para baixo, chamando os outros de burros ou gordos é que não vai funcionar mesmo.



Link: http://bit.ly/LucroComidaSakamoto

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