Deve o STF tratar a indústria do tabaco como qualquer outra?

09.11.17 - Folha de S. Paulo


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 A resposta é não. A indústria do tabaco faz das mortes e adoecimentos de seus consumidores o seu lucro. Fato conhecido é o de que o produto que ela produz mata um em cada dois de seus usuários regulares.

Este simples fato coloca a indústria do tabaco no mesmo patamar que a indústria de armas: indústrias legais, sim, mas que fabricam um produto que está diretamente relacionado à morte.

Por conta disso, o Pacto Global das Nações Unidas (iniciativa que mobiliza a comunidade empresarial internacional para adotar valores fundamentais, como direitos humanos promovendo responsabilidade corporativa social nos seus negócios) recentemente reavaliou e adotou critérios de exclusão para as empresas envolvidas em certos setores de alto risco.

Isso incluiu a produção e fabricação de tabaco e de armas nucleares, químicas ou biológicas (o Pacto Global da ONU excluía apenas participantes de empresas envolvidas na produção de minas terrestres e bombas de fragmentação).

Essa decisão aponta para um fato importantíssimo: desconsiderar a indústria do tabaco como uma indústria qualquer, pelo simples fato de ela ser uma indústria que não ajuda aos países nem suas populações.

Considerar a indústria do tabaco como qualquer outra só ajuda a própria indústria do tabaco, que tem interesse em ser tratada como tal e usa o argumento de que regulações que possam impactá-la abram precedentes para ações similares junto a outras empresas. Isso não ajuda nem ao país, nem à sua economia, nem a outras indústrias.

Por ano, a economia global perde mais de US$ 1 trilhão por conta do consumo de produtos derivados do tabaco.

Vale ressaltar que não estamos tratando somente da indústria de cigarros. Nós nos referimos aqui a todos os produtos derivados do tabaco, como cigarrilhas, charutos, cachimbo, rapé, narguilé e cigarros de Bali, dentre outros. Todos esses produtos são desenvolvidos com alta tecnologia, engenhosamente concebida para capturar novos consumidores na sua mais tenra idade.

Entre os fumantes regulares, 90% começaram a fumar antes dos 19 anos de idade. Precisamos destacar isso, pois não estamos falando de escolhas, mas sim de indução a um comportamento que em pouco tempo se torna uma doença, assim classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) —a dependência da nicotina.

Para que isso aconteça, essa poderosa e bilionária indústria usa de artifícios de marketing desde a concepção da embalagem até os sabores dos seus produtos, adicionando chocolate, baunilha, cereja e outras substâncias químicas, indiscriminadamente, com o único objetivo: induzir menores de idade à dependência, para que se tornem seus fiéis consumidores até a morte.

O principal objetivo dos aditivos nos produtos de tabaco é disfarçar o desagradável desconforto causado pelos primeiros cigarros, facilitando assim a experimentação e posterior iniciação do tabagismo.

Após esse primeiro passo, a dependência se instala, sendo a nicotina considerada como uma das drogas com o maior potencial de causar dependência. Nossos filhos, sobrinhos e netos estão sofrendo agora o impacto dessa engenhoca. E o que podem vir a sofrer no futuro?

Segundo um levantamento feito pela ACT Promoção da Saúde, das 150 marcas de cigarros registradas no Brasil em 2016, 80 tinham algum sabor específico, um aumento expressivo de 1.900% no número de marcas saborizadas registradas na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), se comparado ao ano de 2012.

E por que isso tem acontecido? Pesquisas mostram que 60% dos adolescentes fumantes consomem cigarros mentolados (pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz) e que 45% dos fumantes de 13 a 15 anos consomem cigarros com sabor (pesquisa do Instituto Nacional de Câncer - Inca).

Ou seja, a indústria fumageira precisa dos jovens para repor os consumidores que param de fumar ou morrem. É puramente uma questão de mercado.

Baseada no conhecimento científico, na experiência internacional, embasada legalmente na sua missão e mandato e no comprometimento legal do Brasil junto à Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da OMS, a Anvisa cumpriu, em 2012, seu dever, proibindo os sabores nos cigarros brasileiros, sendo aplaudida pelos 181 Estados-parte do tratado. Tal Convenção possui artigos que tratam especificamente da necessidade de regulação dos produtos derivados do tabaco.

No entanto, a proteção que essa medida proporciona à saúde da criança e do adolescente, garantida pelo artigo 227 da Constituição Federal e por outros dispositivos constitucionais, está suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde então, em função de uma liminar concedida em ação movida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) contra a resolução da ANVISA, atendendo aos interesses da indústria do tabaco.

O que nos intriga é por que até hoje essa questão não era votada, já que os sucessivos adiamentos nesses cinco anos só beneficiam a indústria do tabaco, que continua promovendo, disponibilizando e estimulando o consumo de seus produtos com falsos e venenosos perfumes e sabores com apelo especial aos adolescentes.

Do outro lado, a sociedade brasileira, cuja garantia constitucional à saúde deve ser salvaguardada pelo Supremo, continua sofrendo por doenças graves e mortes anuais de 136 mil pessoas associadas ao tabagismo, segundo dados do Inca, e assistindo a essa contradição.

O que nos intriga é o porquê de uma indústria legal, mas comprovadamente de alto risco, continuar sendo tratada como qualquer outra. Pode ter sido um dia, quando ainda pouco sabíamos a respeito do seu produto. Mas os governos do mundo inteiro se juntaram para regulamentá-la com um Tratado Internacional, cuja própria negociação o Brasil presidiu.

Assim fica aqui registrado nosso pleito aos excelentíssimos ministros do Supremo Tribunal Federal para que nesta quinta-feira (9), quando o tema entrará em pauta novamente, considerem a urgência dessa decisão, que não trata de um assunto secundário ou de menor relevância, já que os jovens brasileiros estão expostos a esse produto há muitos anos.

Que não apenas se legitime o papel da Anvisa de proteger a sociedade desse produto, mas que se zele por ela. Que passem a olhar e a tratar o setor do tabaco como o de seu irmão, o setor de armamentos, não lhe auferindo o benefício de não ser regulado para produzir, promover e vender um produto que não tem outro benefício que o de aliciar novas vítimas dessa mesma indústria.

VERA LUIZA DA COSTA E SILVA, médica, é chefe do secretariado-executivo da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco



Link: http://bit.ly/ArtigoTabaco

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