Restrições e impostos para cigarros têm que aumentar, defende especialista

22.10.18


Folha de S. Paulo - Natália Cancian

Cientista da convenção da OMS para tabaco diz que fumo deve ser proibido em parques, praias e carros

Responsável por organizar as discussões entre 181 países que fazem parte de um tratado internacional de controle do tabagismo, a médica brasileira Vera Luiza da Costa e Silva defende que o Brasil retome o debate sobre o aumento de impostos de cigarros e eleve as restrições a fumar em espaços públicos, como parques e praias.

O objetivo é voltar a reduzir o índice de fumantes, hábito que hoje atinge 10,1% da população brasileira, e chegar a 5% —índice que seria “perto de se tornar um país livre do fumo”, diz.

Homem segura cigarro perto de um cinzeiro Especialistas brasileira defende maiores impostos e restrições ao cigarro - Eduardo Knapp/Folhapress

“É preciso agora que o país entre em uma nova fase, que é proibir fumar dentro de carros, em praias, em parques públicos, que é o que vários países já estão fazendo. E aumentar a proteção da criança, como ao colocar os maços em prateleiras fechadas nos pontos de venda”, disse à Folha.

Há quatro anos, Silva ocupa o cargo de chefe do secretariado-executivo da Convenção-Quadro de Controle do Tabaco, primeiro tratado em saúde pública da história da Organização Mundial de Saúde, em vigor desde 2005. Neste período, têm visto mudanças. 

Segundo ela, em meio à queda no consumo de cigarros, a indústria tem tentado criar um “novo mercado” com produtos como dispositivos de tabaco aquecido e cigarros eletrônicos. Mas há riscos, diz.

Um deles, avalia, é “renormalizar o uso da nicotina como algo socialmente desejável e aceitável” em meio ao discurso de que tais produtos são menos danosos, algo que ainda não têm evidências suficientes. Outro é atrair jovens a esses produtos.

Para ela, o anúncio de que empresas como a Philip Morris vão parar de fabricar cigarros convencionais para apostar em novos produtos é enganoso. “As indústrias anunciam isso em países desenvolvidos, mas o marketing continua crescente em países em desenvolvimento.”

Folha - Como podemos avaliar a posição do Brasil hoje no controle do tabagismo em relação a outros países?
Vera Luiza da Costa e Silva - O Brasil tem caminhado bem, especialmente considerando que é grande produtor e exportador. Teve queda drástica no consumo com uma política de controle de tabagismo de ponta e ganhou ação no STF [Supremo Tribunal Federal] para proibir os aditivos. E o que observamos, ao contrário do que a indústria sempre disse, é que a redução no consumo não afetou em absolutamente nada o trabalho dos plantadores de fumo nem a indústria fumageira, porque a maior parte da produção é exportada. Além disso, o Brasil também desponta como um país que proíbe publicidade e patrocínio da indústria e que tem uma agência reguladora, o que nem todos têm.

Por outro lado, estamos atrasados nos maços genéricos. Há um projeto de lei no Senado que não avança devido à interferência da indústria do tabaco e da bancada do fumo no Congresso. A política de impostos e preços foi estabelecida, mas está precisando reacender para continuar com impostos progressivos. O Brasil também precisa implementar a proibição dos aditivos que, apesar de ter passado no Supremo, não está sendo aplicada por conta das disjunções da indústria.

O país vinha tendo queda forte na taxa de fumantes, mas o índice estagnou nos últimos dois anos. Por outro lado, há sinais de avanço no consumo entre jovens. Como vê esses dados?
Há uma estagnação, mas a tendência geral ainda é de queda. Se pensar que começou com 34,8% [de fumantes em 1989, segundo o IBGE] e agora estamos em torno de 10%, é uma redução impressionante. A lei antifumo “pegou” e a população é a primeira a não deixar que se fume em lugares fechados. E apesar de ainda haver muito espaço para aumentar o preço de cigarro no Brasil, esse aumento nos últimos anos já foi responsável por uma redução do consumo.

Agora, a verdade é, quando se tem 35% de fumantes, trazer para 10% talvez seja menos difícil do que baixar para menos. Esses 10% de fumantes estão em populações específicas, geralmente de baixo nível socioeconômico. São grupos de fumantes altamente dependentes, ou na zona rural, onde há mais dificuldade de chegar e informar. Isso aponta a necessidade de ter trabalhos para essa população específica, porque vai ficar cada vez mais difícil baixar essa taxa. Tem uma série de medidas que o Brasil ainda pode tomar para o que chamam “jogada final”, que é chegar a 5% da população.

Seria um percentual que vai continuar a existir?
É como estar quase perto de erradicar o fumo como fator de risco. Países que vão avançando nos 5% de prevalência e que começaram em níveis muito mais altos são países chegando no xeque-mate, virando a curva para se tornar um país livre de tabaco. Por isso é difícil chegar nos 5%.

É preciso agora que o Brasil entre em nova fase, que é proibir fumar dentro de carros, em praias, em parques públicos, que é o que vários países já estão fazendo. E aumentar a proteção da criança, como colocar os maços em prateleiras fechadas nos pontos de venda, não misturadas com chicletes, nem balas nem chocolates. Outras medidas são adotar maços genéricos, aumentar impostos e preços, trabalhar no combate ao contrabando e proibir os [aditivos de] sabores de fato.

A indústria tem citado a estagnação na taxa de fumantes para defender novos produtos como alternativa de redução de danos. Como avalia essa proposta?
A indústria está tentando criar um novo mercado, porque sabe que a médio e longo prazo o atual tende a ir encolhendo. E claramente os dados mostram que estamos reduzindo o consumo. Com isso, a indústria vai trazer novos produtos ao mercado, e eles têm que ser testados e avaliados cientificamente. É preciso avaliar se realmente trazem os benefícios que a indústria propaga ou se têm efeitos indesejáveis, como estimular a iniciação entre jovens e servir de porta de entrada para o vício.

Hoje há países que são menores e com controle muito maior sobre a demanda e a oferta que estão testando os produtos no mercado, como um grande ensaio clínico. É o caso do Reino Unido. Ao mesmo tempo, há países na mesma linha da Commonwealth que proíbem e taxam esses produtos como veneno. Você vê que mesmo os países desenvolvidos não sabem qual medida tomar.

A última conferência do tratado discutiu esse tema em reuniões fechadas com os países. Houve decisão?
A última COP [conferência entre os 181 países, realizada neste mês] adotou decisão para que regular ou proibir produtos de tabaco aquecido continue como proposta aos governos, além de não vir a público falando que esses produtos são mais saudáveis sem que exista comprovação para isso. Orienta também não fazer propaganda e marketing desses produtos para adolescentes.

Esses produtos podem simplesmente atrair pela tecnologia. E vão atrair um mercado que depois provavelmente não vai se sustentar, porque pessoas de nível social mais baixo podem não ter como manter os gastos, e aí voltam para o cigarro tradicional. Outro problema dessas novas drogas é renormalizar o uso da nicotina como uma coisa socialmente desejável e aceitável. É um problema seríssimo do ponto de vista de saúde pública e de controle do tabagismo.

Nesse sentido, iniciativa recente da Anvisa de reavaliar a regulamentação desses produtos, hoje proibidos, não iria na contramão do que recomenda a convenção, já que não há volume suficiente de evidências sobre riscos e benefícios?
A Anvisa está exercendo seu papel de agência reguladora de ouvir as diversas partes. Isso não quer dizer que vai sair liberando os produtos no Brasil. Qualquer que seja a medida que adotar, tem que ser baseada em evidências. Até que seja estabelecido qual é o caminho a seguir, o Brasil está se precavendo e protegendo a população [com uma norma de 2009 que proíbe a produção e venda desses produtos]. Ele não ignora os fatos nem se opõe a eles. Ele simplesmente usa o princípio da precaução para evitar que se cometa um eventual desastre em saúde pública já que não se tem muita clareza de qual caminho seguir.

Indústrias como a Philip Morris já anunciaram que vão parar de fabricar cigarro convencional e pretendem se concentrar só no tabaco aquecido.
A indústria anunciou isso em países desenvolvidos, mas o marketing continua e é inclusive crescente em países em desenvolvimento. Quer dizer: há uma dissociação entre discurso e prática. Em países onde há baixa regulação, a indústria do tabaco continua fazendo campanhas agressivíssimas para vender cigarros. Na África, por exemplo, o marketing é desenfreado e irresponsável, completamente ao contrário do que ocorre em países desenvolvidos.

Hoje, embora a convenção recomende veto ao marketing e publicidade, entidades têm apontado novas estratégias da indústria para divulgar os produtos. Tem acompanhado esses casos?
Sim. A indústria está usando mídias sociais como Instagram, Facebook e Youtube para promover esses produtos, com festas, pessoas e artistas fumando e usando tabaco. Estão usando um novo expediente para continuar fazendo marketing. Neste sentido, a COP estabeleceu um grupo de trabalho para poder abordar a internet e a redes sociais. É uma área que não estava prevista quando as diretrizes [de medidas contra a publicidade do tabaco] foram adotadas em 2008. Estamos reagindo a isso. Mas nada impede cada país de já pensar em uma regulação. Esperamos que o Brasil esteja pensando sobre isso.

Estudos também mostram um crescimento entre jovens no uso de produtos que não são novos, como o narguilé. Como vê esse avanço, e o que pode ser feito?
Esses produtos têm que estar debaixo de toda e qualquer regulação de produtos de tabaco. É preciso também desmitificar um pouco esses produtos. Isso pode ser motivo de campanhas nacionais. As advertências sanitárias também poderiam abordar o problema desses produtos alternativos, que são muito antigos mas entram como novidade em países que não tinham isso como parte de sua cultura.

No Oriente Médio entram como nova onda para a garotada resgatar suas origens. E nos países onde não fazem parte do acervo e da antiguidade cultural, entram como se fossem novos produtos recém-colocados no mercado. Fora isso, esses produtos também são alvos de contrabando, com entrada pela porta dos fundos para que se tornem mais populares, e têm aditivos, que é uma das bases para que a garotada experimente. Por isso no Brasil é muito urgente que a decisão de proibição dos aditivos seja devidamente implementada.

Hoje a indústria tem recorrido a instâncias inferiores dizendo que não é possível separar completamente esses aditivos e que eles são necessários para conservação. Como avalia esse argumento? 
Existem países onde o uso de aditivos já é proibido, na União Europeia, ou no Canadá. Ninguém ia pedir uma coisa que é inviável. Claro que a indústria vai perder mercado se retirar os aditivos, porque além de terem apelo do sabor, eles diminuem a aspereza com que a fumaça entra no sistema respiratório. Quando retira os aditivos, os cigarros vão ficar menos tragáveis e vai ficar mais difícil da garotada começar a fumar. Isso está em linha com o tratado, cuja ideia é reduzir a demanda e ao mesmo tempo ajudar na redução da oferta, apoiando plantadores de tabaco para que vão para outro tipo de ganha-pão que não seja plantando uma droga que mata metade dos seus consumidores.

A repórter viajou para a 8ª COP a convite da ONG Campaign For Tobacco-Free Kids

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2018/10/restricoes-e-impostos-para-cigarros-tem-que-aumentar-defende-especialista.shtml




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