A 'nova nicotina'? Tributar bebidas açucaradas para incentivar hábitos saudáveis gera polêmica

23.10.21


Época

 

Refrigerantes desempenham papel no desenvolvimento de alguns tipos de câncer Foto: O GLOBO
Refrigerantes desempenham papel no desenvolvimento de alguns tipos de câncer Foto: O GLOBO

BRASÍLIA e SÃO PAULO — Atire a primeira pedra quem nunca caiu ou cai em tentação. São aquelas situações em que, mesmo sabendo que uma ação no presente poderá provocar problemas no futuro, a gratificação imediata fala mais alto. E lá se vai mais um maço de cigarros, um pote de sorvete numa sentada ou alguns drinques para aliviar o estresse.

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Há também o peso da preguiça. E, de repente, fazemos aquela saída de carro para rodar apenas dois quarteirões, a falta de paciência para separar o lixo reciclável ou levar sacolas reutilizadas para carregar as compras. A lista pode ser bem longa.

Governos de todas as partes do mundo descobriram há muito tempo que podem dar um empurrão para incentivar comportamentos mais saudáveis e mais voltados para o bem comum aumentando tributos. O caso clássico é o do cigarro, com vários exemplos documentados. No Brasil, entre 2006 e 2013, o preço subiu 116%, e as vendas caíram 32%.

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Essas medidas costumam funcionar por dois motivos. Primeiro porque a elevação do valor pesa no bolso, principalmente para os mais pobres e jovens. Segundo porque são “educativas”, ao sinalizar desaprovação da sociedade como um todo.

Na mira

Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 110, em tramitação no Senado, tem muita coisa técnica, mas há, pelo menos, um ponto de amplo entendimento: propõe uma discussão nacional sobre quais produtos, que podem afetar a saúde e o meio ambiente, devem ter uma tributação mais elevada, na toada dos “impostos do pecado”. As bebidas açucaradas aparecem no topo da lista dos candidatos a alvo da vez.

De acordo com levantamento do The Global Food Research Program, ligado à Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, nos Estados Unidos, por volta de 50 nações já adotaram medidas nesse sentido, sendo que 25 delas aplicam essas ações desde 2017.

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Tome o exemplo do Chile. Após a implementação de um pacote de políticas públicas em 2014 — que incluíram aumento de tributos sobre bebidas açucaradas (em 5%), a adoção de uma lei sobre rotulagem de alimentos e de restrição à publicidade —, os chilenos passaram a comprar menos refrigerantes e bebidas de fruta industrializadas com grande quantidade de açúcar.

Foi o que mostrou um estudo feito em 2016, que reuniu cientistas do Instituto de Nutrição e Tecnologia de Alimentos da Universidade do Chile, entre outras entidades.

No México, três anos após a adoção da taxa, também houve queda na venda de refrigerantes. Uma pesquisa que avaliou a recorrência do consumo mostrou que o grupo que não consumia esse tipo de bebida passou de 7% da população antes do imposto, para 13,6% depois da taxa.

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Hora certa

Na cidade da Filadélfia, nos EUA, a régua passou entre os adolescentes. Após a implementação do imposto das bebidas açucaradas, o consumo de refrigerantes por semana caiu 27,7% entre os mais jovens.

A mudança de hábitos nessa faixa etária é especialmente importante, explicam os médicos, porque a obesidade nessa época tende a aumentar as chances de uma condição de saúde bem parecida na vida adulta.

— É comum que esses impostos tenham maior impacto sobre os grupos que mais consomem bebidas açucaradas. Nos Estados Unidos, por exemplo, são os adolescentes. Além disso, os impostos também têm um resultado maior sobre os grupos que são mais sensíveis aos aumentos de preços — afirma Anna Grummon, pesquisadora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard.

Apesar dos resultados conhecidos — a maioria deles dedicados a avaliar a redução do consumo desses produtos —, ainda é difícil mensurar o efeito na queda de casos de diabetes e de mortes em decorrência de complicações de saúde. É o que explica a pesquisadora do The Global Food Research Program, Shu Wen Ng:

— Vamos levar um tempo até observar os resultados de saúde dessas políticas. A epidemia de obesidade não aconteceu do dia para a noite, foram décadas acumulando mudanças na cadeia de alimentação e distribuição para chegar até aqui.

E questiona:

— Como podemos esperar que uma única política seja capaz de resolver isso? — pergunta a pesquisadora, que defende uma “harmonização” de outras medidas para, de fato, impactar a obesidade em massa e outras doenças.

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Especialistas brasileiros, por sua vez, apoiam amplamente a medida de taxar as bebidas açucaradas. Em setembro, quase duas dezenas de entidades de saúde do país, incluindo a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), defenderam, em um posicionamento conjunto, a taxação extra desses refrescos açucarados no país.

A taxa do imposto proposta pelos especialistas está de acordo com o que sugere a Organização Mundial de Saúde (OMS), de ao menos 20%. Cintia Cercato, presidente da Abeso e uma das médicas que assinam o documento, faz coro à ideia de que a medida deve estar unida a outras estratégias de proteção à saúde, como a proibição da publicidade de alimentos ultraprocessados e bebidas para o público infantil.

Riscos envolvidos

Eduardo Leão, diretor executivo da Unica, associação que representa a agroindústria canavieira no Brasil, diz que medidas como essas elevam o risco de que o consumo migre para produtos alternativos.

O perigo existe mesmo, argumentam especialistas, e as autoridades devem ficar atentas à necessidade de também aumentar os impostos que incidem sobre esses produtos.

As escolhas, lembra Paulo Henrique Pêgas, professor de contabilidade tributária do Ibmec, no Rio, devem se apoiar em avaliações técnicas.

— O que o Congresso está fazendo não é ruim, tanto do ponto de vista tributário como de saúde. Mas a forma apressada de criar esse imposto não é ideal — diz.

Outro ponto que merece atenção é a eficácia. Não é porque o aumento dos impostos para o cigarro tiveram efeito que o mesmo vai acontecer com todos os produtos. Há experiências infrutíferas pelo mundo.

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A Dinamarca decidiu taxar, em 2011, produtos que continham gordura saturada. Subiu em quase 5% a tributação na manteiga e no sorvete. Um ano depois, a medida foi revogada.

O imposto sobre a gordura não diminuiu de forma significativa o consumo porque a demanda foi considerada inelástica. Ou seja, mesmo com preços mais altos, os dinamarqueses continuaram com grande apetite por esses itens.

Há casos em que a medida funciona e isso causa uma enorme gritaria. O governo britânico introduziu em 2018 impostos sobre sacolas plásticas. Um estudo publicado em 2020 mostrou uma queda no número dessas sacolas encontradas nas regiões costeiras. O excesso de impostos, porém, gerou uma saraivada de críticas.

Irlanda e Austrália adotaram iniciativas semelhantes. No Brasil, prefeituras tentaram seguir o mesmo caminho, mas nem sempre com um final feliz para o meio ambiente Diante da gritaria, muitas voltaram atrás.

https://oglobo.globo.com/economia/epoca/governo-estuda-elevar-imposto-sobre-produtos-como-refrigerantes-para-incentivar-habitos-saudaveis-25248246




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