Meu prato, meu mundo: o impacto das nossas escolhas alimentares

03.11.21


Portal Lunetas

O prato nosso de cada dia impacta mais do que a saúde do corpo e da mente. Nossas escolhas alimentares estão conectadas também à saúde do planeta como um todo. Isso significa que o que a gente coloca no prato está relacionado com a crise climática e pode agravar os desequilíbrios que já estamos atravessando.

A preocupação com os impactos negativos da nossa alimentação sobre o planeta tem levado muitas pessoas, inclusive crianças, a decidirem evitar o consumo de carnes e outros alimentos de origem animal.

Sofia nasceu e cresceu numa família vegetariana e nunca comeu carne – o que inclui peixe, frutos do mar e presunto, por exemplo, como faz questão de deixar claro. Quer dizer, provou uma única vez, sem querer, numa festa infantil quando tinha uns 4, 5 anos… “Lembro que o hambúrguer com bacon era muito salgado e um pouco forte, porque eu não estava acostumada”, conta. Embora não tenha sido uma escolha consciente, o hábito vem se reafirmando. “Meus pais sempre disseram que se eu sentisse vontade de comer carne, eu era livre para provar. Mas eu nunca quis.”

“Essa geração talvez ainda esteja ‘bem’, mas a próxima muito provavelmente não vai ter nem aos pés do que a geração dos meus pais tiveram”, comenta Sofia.

“Nos próximos 20 anos, a situação vai estar tão horrível que vai ser difícil respirar”

Embora seja importante que entendam seu papel diante da emergência climática, os pequenos não devem se sentir culpados ou responsabilizados além da conta, o que pode levar ao desenvolvimento de problemas relacionados à ansiedade climática, por exemplo, um efeito sobre o psicológico das crianças e adolescentes diante dos impactos visíveis do colapso ambiental e da sobrecarga de notícias sobre o tema.

Além de mais de um terço das emissões globais de dióxido de carbono ser gerado por sistemas de alimentação, a produção de alimentos derivados de animais (carne, ovos e leite) está associada a efeitos como o surgimento de novas pandemias, fome, uso de agrotóxicos, crescente resistência a antibióticos, desmatamento e risco de perda da biodiversidade.

“O Brasil é um dos principais produtores de alimento, trazendo para a cadeia alimentar os impactos do desmatamento e da emissão de carbono, além de aditivos, plásticos e outros materiais associados”, comenta Gabriel Lui, gestor ambiental especialista em Ecologia Aplicada e coordenador do Instituto Clima e Sociedade.

“Nossas escolhas alimentares, mais de uma vez por dia, definem o mundo em que queremos viver e que mundo queremos deixar para as próximas gerações. Por isso, elas precisam ser conscientes e justas”

Como as mudanças alimentares podem ajudar a conter a crise climática?

Antes, é preciso “derrubar o mito de que o indivíduo é soberano sobre suas escolhas alimentares”, defende André Degenszajn, diretor geral do Instituto Ibirapitanga. “A população é empurrada ao consumo de alimentos ultraprocessados (geralmente, pobres em nutrientes, com muito sal, gordura e açúcar, além de aditivos, como adoçantes, corantes e conservantes) quando o acesso a alimentos in natura é restrito. Seremos livres para escolher se os alimentos forem acessíveis, tanto do ponto de vista do preço quanto da proximidade de nossas casas”, diz.

Para que mudanças no padrão de consumo alimentar tenham impacto sobre a crise ambiental, “é preciso estar em ambientes que promovam escolhas saudáveis e sustentáveis”, opina Kelly Alves, nutricionista e consultora da ACT Promoção da Saúde. “Mas, nosso sistema alimentar está baseado num modelo hegemônico concentrado em monoculturas (como a soja e o milho), cuja produção envolve desmatamento e ocupação de grandes extensões de terra e uso abusivo de recursos hídricos, agrotóxicos, sementes híbridas e transgênicas. Ao privilegiar a produção agrícola em larga escala, se beneficia também a produção de alimentos ultraprocessados, que utiliza esses itens e seus derivados como matéria-prima”, diz. Além de restringirem as práticas alimentares das famílias, lembra Kelly, “esses alimentos estão fortemente relacionados a doenças como obesidade, hipertensão, diabetes e câncer, e à poluição ambiental, devido ao processo industrial e o acúmulo de resíduo gerado com suas embalagens”.

Falar sobre escolhas alimentares no Brasil é também falar sobre desigualdade social. “Embora a cultura alimentar tenha uma boa base do ponto de vista nutricional e da ingestão de calorias básicas, isso não significa uma dieta adequada”, comenta André. No último trimestre de 2020, 19 milhões passaram fome e 116,8 milhões registraram algum grau de insegurança alimentar, o que alcança a 55,2% dos domicílios brasileiros. “Além do desmonte do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e da desativação do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), que garantia a compra de pequenos produtores, com o ‘feijão com arroz’ ficando mais caro, esta precarização da alimentação no país pode piorar. Enquanto isso, quem pode gastar mais, também escolhe uma dieta menos sustentável e tem maior participação no consumo de alimentos ultraprocessados do que o pobre”, diz André.

Monotonia e tédio alimentar
Embora o senso comum tenha se habituado à ideia de que nossa comida é rica, consumimos poucos produtos. “Isso é uma injustiça diante da biodiversidade do Brasil. Será que a soja é a nossa melhor escolha como sociedade frente à emergência climática?”, questiona Gabriel. André concorda que, ao invés de haver “incentivo para a ampliação das cadeias alimentares, se prioriza sementes transgênicas, que vão padronizando e empobrecendo a diversidade, sem considerar a riqueza de culturas brasileiras”.

Para Gabriel, “é preciso que a agricultura tradicional e convencional, conduzida de modo mais sustentável e que trará mais qualidade de vida às pessoas, consiga superar a lógica econômica da produção em larga escala de monoculturas, para haver um acesso mais igualitário e chegar mais barato à mesa das pessoas”.

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa que o Estado deve garantir o acesso da população a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.

Por que a carne é inimiga do clima?

No Brasil, 492,2 milhões de toneladas de gás carbônico (CO2), 69% das emissões totais, vieram da atividade agropecuária, segundo dados do Observatório do Clima). Em média, cada boi ou vaca produz de 250 a 500 litros de metano por dia – elemento com potencial poluente 25 vezes superior ao gás carbônico.

Para evitar o colapso do mundo natural, surgem tendências ou movimentos que nos convidam a repensar o consumo de carne. Entre elas, estão as dietas flexitarianas (termo que une “flexível” e “vegetarianismo”), à base de plantas e quantias menores de alimentos de origem animal; a “dieta planetária saudável”, que combina o combate a doenças relacionadas à má nutrição (desnutrição e obesidade) e sustentabilidade ao priorizar comidas que vêm da terra e quantias menores de alimentos de origem animal; “plant-based”, alimentos à base de plantas que imitam produtos animais; a “segunda sem carne”, que incentiva ficar sem comer carne um dia na semana.

Contudo, André lembra que “o discurso de redução do consumo de carne e a consumir alimentos mais saudáveis pressupõe acesso à renda e seus efeitos políticos”. Ou seja, há uma questão moral entre evitar o consumo e acessar a carne. Segundo ele, é preciso criar alternativas e buscar incentivos para que as escolhas alimentares estejam mais conectadas aos impactos que elas produzem, sendo mais importante que boa parte da população coma menos carne do que estimular o vegetarianismo de um pequeno grupo. O impacto de comer menos carne é maior do que menos gente adotar uma ou outra corrente”.

Para Gabriel, num país desigual como o Brasil, é difícil simplesmente eliminar a carne. Faz mais sentido “apresentar opções de outras proteínas para substituir no prato e compensar a falta da carne, inclusive em restaurantes mais populares; e estimular o consumo de forma refletida, tanto do ponto de vista ambiental quanto da saúde, mas sem deixar de pensar sobre acesso e produção”. Além disso, ele propõe optar por carnes de processos mais sustentáveis, que respeitam requisitos de bem-estar animal e seguem normas de fiscalização, por exemplo.

Os gêmeos Leonardo e Eduardo Santos, do Vegano Periférico, pararam de consumir todo tipo de produto de origem animal, não usam produtos testados em animais nem frequentam lugares que os exploram, pois acreditam que “tudo o que a gente coloca no nosso prato tem um impacto no mundo”.

Além de terem percebido que “uma alimentação mais natural é muito mais benéfica para o nosso organismo”, os irmãos destacam como a cozinha ficou mais colorida ao priorizar o consumo de vegetais, grãos, cereais, frutas e legumes”. Para eles, o consumo de produtos de origem animal, ultraprocessados, embutidos e industrializados é “um dos motivos que tem matado a população, principalmente pobre, negra e periférica. Portanto, se alimentar bem é uma questão de saúde pública”.

“É mais do que urgente refletir sobre como estamos destruindo esse mundo e matando nosso povo”

Leonardo defende que “o que torna o veganismo elitista não é o preço, mas a informação. A rotina da periferia envolve preocupações com alimentação básica, com trabalho que paga pouco, tomar busão, enquanto galera de classe média, que tem uma vida mais estável e acesso à educação de qualidade, leva a parada como um estilo de vida, e não uma forma política de viver”, opina.

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Os irmãos gêmeos Leonardo e Eduardo Santos, do Vegano Periférico, compartilham o que pensam sobre o veganismo ser uma escolha elitizada

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Os irmãos gêmeos Leonardo e Eduardo Santos, do Vegano Periférico, compartilham o que pensam sobre o veganismo ser uma escolha elitizada

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“Com informação, a gente vai ser vegano, gastar menos com produtos naturais, se alimentar melhor e não contribuir com a pegada ecológica relacionada ao consumo de animais, a exploração animal, o prejuízo ao meio ambiente devido ao desmatamento; e com o nutricídio nas periferias , declara Leonardo.

Como essas questões se relacionam com as infâncias?

Antes de mais nada, a nutricionista Kelly lembra que a construção de hábitos alimentares adequados e saudáveis passam pelo aleitamento materno exclusivo e pela introdução de novos alimentos após o sexto mês, garantindo que as crianças atinjam todo o seu potencial de crescimento e desenvolvimento. Depois, as recomendações gerais do Guia alimentar para a população brasileira sobre preferir alimentos in natura a ultraprocessados se aplicam a todos.

“A preocupação em melhorar a alimentação da criança é a chance de melhorar a alimentação de toda a família”

Quando as crianças passam a fazer suas próprias escolhas alimentares, sobretudo quando há restrição (de carnes a outros alimentos de origem animal, por exemplo), é importante dedicar mais atenção na combinação dos demais alimentos que farão parte de sua dieta. No caso das crianças vegetarianas e veganas, é preciso redobrar os cuidados para garantir a oferta de quantidades suficientes de nutrientes, em especial o ferro e o cálcio, para atender suas necessidades e prevenir deficiências nutricionais. No caso de vegetarianos estritos e veganos, atenção especial à vitamina B12, que não está presente nos alimentos de origem vegetal. Quanto mais restrições alimentares, maior a necessidade de atenção e acompanhamento.

Cardápio-base para o almoço e jantar da criança

  • 1 alimento do grupo dos cereais ou do grupo dos tubérculos e raízes
  • 1 alimento do grupo dos feijões (leguminosas)
  • 2 ou mais alimentos do grupo dos legumes e verduras, sendo 1 vegetal folhoso verde-escuro e
  • 1 legume colorido
  • 1 alimento do grupo das frutas (uma fruta rica em vitamina C após a refeição ajuda a aumentar a absorção de ferro dos alimentos de origem vegetal)

“As quantidades que devem ser consumidas variam de acordo com a idade, o estado nutricional e as condições gerais de saúde da criança”, lembra a nutricionista Kelly Alves.

Kelly reforça que as crianças precisam ser protegidas contra publicidade abusiva de alimentos não saudáveis na TV e internet e em rótulos com apelo infantil, bem como defende a proibição da comercialização e oferta de alimentos ultraprocessados nas escolas. Pelo contrário, “a educação alimentar e nutricional deve ser desenvolvida de forma transversal no currículo escolar, conforme está previsto na lei de diretrizes e bases da educação”, lembra. “As hortas escolares e as oficinas culinárias, por exemplo, têm se mostrado importantes estratégias pedagógicas para construir uma nova forma de lidar com a alimentação, cuidando de si em harmonia com a natureza.”

Gabriel Lui destaca o importante papel da escola e das famílias ao apresentarem um cardápio variado para as crianças, estimulando-as a pensarem sua relação com a comida, mas também aproveitando para se debater sobre a origem e os impactos da carne, por exemplo. “Crianças são muito abertas a novas experiências e aos exemplos dos adultos. Além disso, como a alimentação infantil acontece prioritariamente via escola no Brasil, a merenda deve priorizar a produção local de alimentos, para que elas se acostumem desde cedo e possam incorporar essas escolhas em seu futuro.”

Além da influência dos adultos como espelhos para os mais novos, André lembra também o poder das crianças em influenciar o consumo das famílias. “Se elas conhecem e acessam a diversidade de alimentos, podem refutar uma dieta baseada em alimentos ultraprocessados. Quando se terceiriza para a indústria o preparo de alimentos – ao invés de preparar, você compra pronto -, se instaura o problema.” Contra esse movimento, André sugere resgatar o preparo dos alimentos em família e a importância das refeições.

“Crianças podem ser vetores de transformação ao promoverem uma educação alimentar em suas casas e um impacto positivo no mundo”

“Alimentação não é só a ingestão de nutrientes. Alimentação é a forma como nós, desde bebês, começamos a perceber o mundo. Alimentação é conexão, história, memória. Por isso, é fundamental estarmos mais próximos dos ciclos naturais, conhecer o caminho que o alimento faz até chegar no prato, quem o cultivou. Além de aconselhar que a gente não coma nada que a nossa bisavó não reconheceria como comida, o jornalista especializado em alimentação Michael Pollan traz três recomendações capazes de assegurar uma alimentação adequada: ‘eat food, not too much, mostly plants’”, lembra André. “Ou seja, não coma aquilo que perdeu qualquer característica de alimento; coma menos (quem tem acesso, come mais do que precisa); e prefira as plantas”.

Do micro ao macro: o que podemos fazer?

A seguir, listamos algumas medidas relacionadas à alimentação, individuais e coletivas, que podem ajudar a conter o avanço da crise climática:

  • Mudar o padrão de consumo: gradualmente, eliminar alimentos que são muito pesados para o meio ambiente, ocupam muito espaço para serem produzidos ou demandam muitos recursos naturais. Ao diminuir desafios logísticos (transporte, distribuição, abastecimento) e priorizar a compra direto do produtor, por exemplo, os produtos de origem local, orgânicos e agroecológicos podem chegar a mais pessoas, inclusive às populações mais vulneráveis e classes menos favorecidas, a um custo mais justo. Além disso, fomentar mais opções de feiras livres, sacolões, hortas comunitárias, cinturões verdes e alimentos alternativos, pois, quanto menor a distância entre a produção e o prato, menor o impacto ambiental.
  • Reduzir o desperdício: cerca de um terço dos alimentos produzidos no mundo é jogado fora, seja nas fazendas onde são produzidos, no transporte, no processamento, nos supermercados e, finalmente, na nossa geladeira. Cascas, talos e outras porções podem ser aproveitadas em caldos, refogados, geleias e outras receitas.
  • Priorizar alimentos de época: além dos esforços em cultivar alimentos fora da época, como sistema de irrigação e uso de fertilizantes, quando a produção vem de regiões muito distantes, o impacto do transporte é mais alto.
  • Tornar a produção mais sustentável: aproveitar os espaços que já são destinados à criação de boi e agricultura, sem abrir mais áreas de pasto, pois, ao retirar a mata originária de florestas se emite carbono estocado no solo, as regiões ficam mais secas, afeta o ciclo hidrológico e se coloca em perigo a biodiversidade local, inclusive a diversidade de alimentos disponíveis. Também é preciso adotar formas de produção que utilizem menos água e incentivar a implantação de matrizes energéticas mais limpas.

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