Decisão inédita da Justiça americana reforça cruzada contra gigante dos agrotóxicos

14.08.18


O Globo - Sérgio Matsuura

Roundup é um dos agrotóxicos mais populares do mundo - Benoit Tessier / REUTERS

RIO- Possíveis riscos para a saúde humana estão colocando em xeque um dos agrotóxicos mais populares do mundo. Em decisão inédita, a Justiça americana condenou a Monsanto a indenizar o jardineiro Dewayne Johnson em US$ 289 milhões pelo aparecimento de um câncer, que estaria relacionado ao uso do herbicida Roundup, que tem como princípio ativo o controverso glifosato. A empresa, adquirida recentemente pela gigante Bayer por US$ 63 bilhões, é alvo de mais de 5 mil processos semelhantes. No Brasil, uma decisão da 7ª Vara da Justiça Federal em Brasília determinou a suspensão do registro de todos os produtos com o ingrediente até que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) conclua os procedimentos de reavaliação toxicológica.

Os números do glifosato são impressionantes. De acordo com a Zion Market Research, o herbicida gerou receitas de US$ 7,24 bilhões apenas no ano passado. Ontem, primeiro dia de pregão após o veredito em favor de Johnson, as ações da Bayer fecharam em queda de 9,63% na Bolsa de Frankfurt. No Brasil, dados sobre o mercado de agrotóxicos variam de acordo com a fonte, mas todos apontam o glifosato como o mais utilizado. O “Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos”, publicado este ano pelo Ministério da Saúde, informa que em 2014 (última estimativa disponível) foram comercializadas 488,4 mil toneladas de glifosato, o que representa 31,45% do mercado total de defensivos agrícolas. O Ibama também coloca o glifosato como o agrotóxico mais vendido no país, com volumes mais de três vezes maiores que o segundo da lista, o herbicida 2,4-D, segundo dados referentes a 2016.

Em comunicado, a Monsanto afirma entender “o anseio do senhor Johnson e sua família em busca de respostas”, mas o veredito “não muda o fato de que mais de 800 estudos e análises científicas — e conclusões da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, dos Institutos Nacionais de Saúde americanos e autoridades regulatórias em todo o mundo — apoiam o fato de o glifosato não causar câncer”. A companhia informa ainda que “apelará desta decisão e continuará a defender o produto, que tem um histórico de 40 anos de uso seguro e continua a ser uma ferramenta vital, eficaz e segura para os agricultores e outros”.

Sobre a decisão da Justiça brasileira, a companhia defende que o glifosato é "ferramenta vital para a agricultura" do país, para ajudar os agricultores a "controlar plantas daninhas de forma eficaz, sustentável e segura":

"Em avaliações de quatro décadas, a conclusão de especialistas em todo o mundo — incluindo a Anvisa, autoridades reguladoras nacionais nos EUA, Europa, Canadá, Japão e outros países, além de organizações internacionais de ciência e saúde — tem sido que o glifosato pode ser usado com segurança".

Lançado em 1974, o glifosato foi considerado seguro por décadas, mas nos últimos anos novos estudos questionaram essa posição. Em março de 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), ligada à Organização Mundial da Saúde, classificou o ingrediente como “provável agente carcinogênico” para humanos. Marcia Sarpa, toxicologista do Instituto Nacional de Câncer (Inca), destaca que um dos estudos considerados pela Iarc acompanhou trabalhadores que lidam com o glifosato desde 1987 para monitorar os riscos para a saúde.

— Não sou eu que estou falando, são estudos científicos realizados no mundo inteiro indicando que a exposição ao glifosato aumenta os riscos de linfoma não-Hodgkin, o mesmo que afetou o jardineiro americano — aponta Marcia. — Nós também fizemos um estudo aqui no Inca, que deve ser publicado até o fim do ano, indicando que pacientes com exposição ocupacional a agrotóxicos em geral, não apenas o glifosato, têm mais chances de desenvolverem linfomas não-Hodgkin.

Além do risco de câncer, os agrotóxicos em geral provocam intoxicação, sobretudo na população rural que lida diretamente com essas substâncias. Segundo dados do Ministério da Saúde, foram registrados 13.982 casos de intoxicação ano passado, aumento de 12% em relação ao ano anterior. O Sistema de Informação sobre Mortalidade contabilizou 492 óbitos por envenenamento em 2016. Professora do Departamento de Geografia da USP, Larissa Mies Bombardi alerta que essas substâncias também chegam às mesas dos consumidores, e em níveis mais altos que o aceito em outros países.

— Falando de resíduos, nós somos extremamente permissivos, sobretudo com o glifosato — diz a pesquisadora, autora de livro que compara o uso de agrotóxicos no Brasil e na União Europeia. — No café, o limite de glifosato permitido é dez vezes maior no Brasil que na Europa; na cana-de-açúcar, 20 vezes; e na soja, 200 vezes maior. A pior situação é na água potável, com o limite 5 mil vezes maior. Com esses níveis de resíduos, eu diria que a saúde das populações urbanas também está vulnerabilizada.

Mas o tema não é pacífico. Flavio Zambrone, presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia e coordenador das atividades do Grupo de Informação e Pesquisas sobre o Glifosato — iniciativa apoiada pelas fabricantes do ingrediente químico —, defende que não existe comprovação da relação entre o câncer e o glifosato nos estudos científicos. Ele destaca que a posição “estapafúrdia” da Iarc não foi aceita por várias agências reguladoras, como a americana, europeia e japonesa, que revisaram a segurança da substância e mantiveram a liberação.

— A controvérsia existe porque eles não consideraram os estudos que são exigidos pelas agências reguladoras — critica Zambrone. — A Iarc tem o histórico de colocar uma série de substâncias como cancerígenas, o que assusta a pessoas. O glifosato foi posto ao lado do café e do salame, por exemplo, como provável agente carcinogênico.

Prioridade para a reavaliação

Na decisão de suspender os registros de produtos no Brasil, datada do último dia 3, a juíza Luciana Raquel Tolentino de Moura destaca que “a reavaliação de agrotóxicos ocorre quando há indicação de perigo ou risco à saúde humana, em comparação a avaliação feita para a concessão de registro, sendo que as novas evidências podem ser apresentadas mediante novos estudos e pelo avanço dos conhecimentos científicos”. Por isso, determina que “a União não conceda novos registros de produtos que contenham como ingrediente ativo” o glifosato e que suspenda, “no prazo de 30 dias, o registro de todos os produtos” com a substância até que a Anvisa conclua os procedimentos de reavaliação toxicológica.

A magistrada determina ainda que a Anvisa priorize o “andamento dos procedimentos de reavaliação toxicológica”, que devem ser concluídos até o dia 31 de dezembro, sob pena de multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento. Além do glifosato, a decisão se estende aos ingredientes abamectina e tiram. Em nota, a agência informa ter tomado “ciência da decisão judicial” e que “está adotando as providências técnicas e jurídicas necessárias”. Ainda cabe recurso.

A reavaliação teve início em 2008 e, em 2013, uma nota técnica concluiu que as evidências disponíveis até então eram insuficientes para determinar efeitos cancerígenos da substância e não recomendou a proibição. Com o parecer da agência da OMS, a análise foi retomada, mas a previsão é que o procedimento só seja concluído ano que vem.

Decisão inviabiliza a produção

Caso a suspensão dos registros seja mantida, os produtores de soja afirmam que a próxima safra será inviabilizada. Bartolomeu Braz Pereira, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil) classifica a decisão da Justiça Federal como “irresponsável” por não avaliar os impactos no setor agrícola. O glifosato é utilizado, basicamente, na capina química dos campos. As sementes geneticamente modificadas são resistentes ao produto, então o herbicida destrói ervas daninhas sem danificar os pés das culturas. As plantas mortas ficam no campo, fornecendo nutrientes para o solo. Dessa forma, afirma Pereira, foi possível aumentar em três vezes a produção por hectare.

— O produto não é cancerígeno e essa decisão inviabiliza a produção — comenta Pereira. — Se nós pudéssemos, diminuiríamos o uso de defensivos, porque eles são caros. Mas são eles que nos permitem aumentar a produção sem ampliar o uso da terra. Se for olhar pelo lado ambiental, temos que idolatrar o glifosato.

https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/decisao-inedita-da-justica-americana-reforca-cruzada-contra-gigante-dos-agrotoxicos-22975585#ixzz5O9qzpatS 




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