monitorACT | Edição 18

22.06.23


ACT Promoção da Saúde

 

 

Editorial

Um jornalista está escalado para cobrir o Dia da Marmota, um evento tradicional que marca o fim do inverno em uma região gelada dos Estados Unidos. Se o animal sair de sua toca, inicia-se um período de menos frio. Caso contrário, o inverno se prolonga por mais algum tempo. Este jornalista arrogante e intratável por algum motivo fica preso neste dia e em seus acontecimentos, que se repetem sem parar. Essa é a história do filme Dia da Marmota, sucesso dos anos 1990, cujo título virou expressão para dizer que as coisas se repetem.

À medida que nos aproximamos de uma possível mudança na tributação de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, com uma reforma tributária que pode incluir uma nova forma de tributar bebidas alcoólicas, derivados do tabaco e alimentos ultraprocessados, velhos argumentos ressurgem em uma espécie de homenagem ao Dia da Marmota. Vozes contrárias às medidas de saúde pública saem de suas tocas e se levantam junto com estratégias utilizadas há décadas, desde quando as políticas de controle do tabaco entraram nas agendas dos países. Naquela época, eles se gabavam de que haveria caos econômico, um cenário de terra devastada e até a liberdade de expressão era usada como argumento. Hoje em dia, essas estratégias são mais sofisticadas, mas permanecem essencialmente as mesmas. Seu objetivo é espalhar o medo, girar a roda do lobby e impedir o progresso da saúde pública, mantendo as empresas que fabricam produtos nocivos com suas extensas participações de mercado e com pouca regulamentação.

Em Conflitos de Interesse e pesquisas da FGV, o artigo de abertura desta edição do Monitor ACT, Bruna Hassan, Mariana Pinho e Vitória Moraes mostra uma estratégia que vem sendo utilizada há décadas no setor do tabaco: pesquisadores sem qualificação na área da saúde e pesquisas manipuladas, dados distorcidos e interpretações dúbias usadas para comprovar um argumento que não pode ser provado.

Mariana Pinho e Vitória Moraes também trabalharam no artigo seguinte, Menos tabaco, mais alimentos, que discute o absurdo de termos uma parcela significativa da população vivendo em fome e insegurança alimentar ao mesmo tempo em que uma área equivalente a mais de três vezes a cidade do Rio de Janeiro é usada para cultivar tabaco.

Por fim, Laura Cury e nosso convidado, Claudio Fernandes, mostram em O Império da Embriaguez que é preciso aumentar impostos e melhorar a regulamentação das bebidas alcoólicas, pois elas causam doenças e mortes e contribuem para a violência doméstica e acidentes de trânsito. No entanto, para não perder consumidores, eles só apresentam uma boa vida com brindes e comemorações.

O que é preciso para sairmos deste Dia da Marmota?

 

Boa leitura, 

Anna Monteiro

Diretora de Comunicação

 


 

Conflitos de interesse e pesquisas da FGV

Bruna Hassan, Mariana Pinho eVitória Moraes

 

A Fundação Getúlio Vargas publicou uma investigação que afirma que a inatividade física, a idade e a renda são mais relevantes para a obesidade do que a dieta. Apesar de ter sido publicada em 2022, a pesquisa está recebendo atenção da mídia agora. A lista de notícias que o mencionam é extensa e inclui algumas com uma abordagem bastante sensacionalista que sugere que esta é uma descoberta que salvará o mundo da obesidade - em Viva Bem (do UOL)), Exame, Valor e Galileu, de O Globo, Veja, Portal Metrópoles, Diário de Pernambuco e até mesmo Agência Brasil. Os autores do estudo são Márcio Holland, Priscilla Albuquerque Tavares, José Maria Arruda de Andrade e Bruno Tebaldi. Todos são pesquisadores econômicos experientes e vinculados à Escola de Economia de São Paulo da FGV, mas nenhum deles é pesquisador das áreas de saúde pública, epidemiologia ou biomédicos. Holland, principal autor do estudo, é professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Finanças e Economia da FGV. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante o governo Dilma Rousseff.

A metodologia da pesquisa, na verdade, apresenta sérios problemas e os autores desconhecem o assunto, uma vez que a revisão da literatura científica é muito fraca.

A pesquisa, na verdade, possui sérios problemas metodológicos e falta conhecimento dos autores sobre o assunto, uma vez que a revisão sobre a literatura científica que estuda esse assunto é muito pobre. Uma revisão bibliográfica é uma etapa inicial essencial a qualquer pesquisa científica bem delineada. E nesta etapa os autores encontrariam muitas evidências, que sequer foram mencionadas no relatório, sobre o papel do consumo de ultraprocessados e bebidas adoçadas, só para citar como exemplos, no risco de ganho de peso. 

O que já se sabe é que há limites da prática de exercício físico sobre a perda de gordura corporal. Uma revisão sobre o tema, analisando que o aumento de atividade física poderia reverter a epidemia de obesidade, não encontrou evidências de que adultos mais fisicamente ativos ganham menos peso do que aqueles que são menos ativos. Diferentes programas de exercício físico já foram testados em Ensaios Clínicos Randomizados, estudos muito superiores aos estudos transversais, e não observaram a variação de peso esperada com o aumento do nível de atividade física. Um estudo publicado na Nature Metabolism pelos principais pesquisadores do tema concluiu que o aumento da obesidade nos Estados Unidos e na Europa provavelmente não foi impulsionado pela redução da atividade física. Em 30 anos de análise acompanhando quase 5 mil adultos, o que caiu foi o gasto energético basal, apesar do gasto energético com a atividade física no período ter aumentado. Neste estudo, usaram um método denominado água duplamente marcada, o padrão ouro para avaliar gasto energético, muito superior à obtenção da estimativa via questionários, utilizado na pesquisa da FGV.

Se um fator de risco de qualquer doença já é bastante consolidado em estudos de elevada qualidade metodológica, como é o caso do tema objeto da pesquisa da FGV, não há o que se pesquisar a partir de estudos de menor qualidade científica. Pois foi o que fizeram os autores do estudo. Usaram dados de inquéritos reconhecidos nacionalmente, a Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019 e a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Esses inquéritos são fundamentais para avaliar o retrato geral de saúde e orçamento da população brasileira para a proposição de políticas públicas adequadas aos problemas mais emergentes, bem como seu monitoramento e avaliação. No entanto, não é o tipo de pesquisa escolhida para avaliar uma relação de causa e efeito, recurso extrapolado pelos autores. Isso qualquer graduando da área da saúde que já teve aulas introdutórias de epidemiologia sabe.

Nenhum estudo avaliado em um único momento do tempo, caso dos inquéritos, tem poder para mostrar a relação entre fatores de risco com ganho de peso ou qualquer outro desfecho de saúde, porque as pessoas estudadas precisam ser acompanhadas no tempo. A potencial causa precisa acontecer antes do efeito. Em inquéritos não dá para saber se quem veio antes foi o ovo ou a galinha. Assim, não é possível saber se a inatividade física e o consumo inadequado levam à obesidade ou se pessoas com obesidade passam a fazer menos atividade física e a ter uma alimentação inadequada. Outro problema relacionado ao desenho da pesquisa é que estudos que comparam métodos mais refinados de avaliação de gasto calórico com análise de consumo e gasto via questionários mostram que pessoas com obesidade sub relatam mais o consumo alimentar do que pessoas sem obesidade, o que pode atenuar o efeito das associações. 

Mais um problema: a pesquisa foi publicada em um relatório sem a devida revisão por pares, isto é, pesquisadores renomados que estudam o mesmo assunto. Essa etapa é crucial no processo de consolidação de uma evidência científica. Certamente, se tal pesquisa fosse submetida à publicação para uma revista científica séria, dificilmente seria aprovada, dada a quantidade de erros e vieses que apresenta.  Por fim, o último capítulo do relatório traz argumentos e achados cuja metodologia não foi possível acessar sobre impactos negativos da tributação para o enfrentamento da obesidade. Algumas afirmações equivocadas seguem abaixo: 

“Ademais, o atual sistema tributário brasileiro, com a sua seletividade tradicional em função da essencialidade dos bens, presente no IPI, no ICMS e até mesmo no PIS e na COFINS, já cria uma distinção de carga tributária entre alimentos naturais e industrializados que parece muito mais abrangente e efetiva do que a adoção de uma tributação uniforme sobre o consumo (conforme sugestão da OCDE) aliada a um tributo tão restritivo como o sin tax. Ou seja, o sistema brasileiro atual parece diferenciar de maneira mais abrangente os alimentos naturais dos industrializados do que o padrão OCDE.”  página 98

“Assim, a criação de uma tributação sobre refrigerantes no Brasil de 50% seria somada à carga tributária atual sobre tais produtos, de 37% (podendo chegar a 47% se ampliar para todo o mercado de refrigerantes e tubaínas) dentre ICMS, IPI, PIS e COFINS sobre o preço final ao consumidor, ou seja, algo que pode chegar a uma carga efetiva de 87% a 97%,  a depender da técnica utilizada no soda tax. Esse patamar de tributação seria muito superior à experiência internacional, de forma que o debate no Brasil parece impor uma tributação adicional em produtos que já são tributados de forma majorada, em relação à experiência internacional. Ademais, no Brasil, como a tributação sobre o consumo já responde por 50% da carga tributária geral, esse tributo adicional tornaria o nosso sistema tributário ainda mais regressivo, recaindo sobre as famílias pobres o peso dos gastos públicos com a saúde.” página 98

“Comparando as tabelas 11 e 12, percebe-se que, mesmo levando-se em conta a complexidade de tributos como o IPI e o ICMS, há uma graduação tributária em favor de uma alimentação saudável, ao contrário de outras experiências internacionais. A tabela 12 mostra que, em geral, os produtos naturais possuem tributação reduzida, o que é importante, ainda que pouco tenha a ver com grau calórico de sua composição” página 100

“Nesse sentido, a mera importação de tendências internacionais poderá ter consequência aparentemente inesperadas, já que o Brasil tributa a alimentação industrializada com IPI, ICMS, PIS e COFINS, ao passo que os alimentos naturais não tendem a ter a incidência do IPI e contam com uma série de desonerações. A mera adoção das recomendações internacionais de uma tributação do tipo IBS uniforme terá o potencial de encarecer alimentos naturais e baratear aqueles industrializados, deixando a função educacional apenas para um tributo excessivamente restritivo, como é o caso da tributação sobre as bebidas adoçadas, com as suas inúmeras exceções.” página 101

Os autores não oferecem a metodologia para o cálculo de carga tributária sobre refrigerantes e outros alimentos ou qualquer comparação com fundamentação técnica que mostre que a carga tributária do Brasil é superior à de outros países. Além disso, não há nenhum desestímulo por organismos internacionais a uma carga tributária elevada. O estudo da ACT com a FIPE, citado pelos autores, que simula uma alíquota de 50%, prevê bons resultados de arrecadação, PIB e empregos para o Brasil. Contrapondo-se a todos esses trechos (e mais trechos logo abaixo) e aos achados das tabelas 10, 11 e 12, pesquisa da ACT em parceria com economistas observou que o sistema tributário atual é desigual e favorece o consumo de alimentos ultraprocessados, e não o contrário, como afirmam os autores. Mais detalhes podem ser encontrados nestes estudos:

 

 

 

 

A análise da FGV virou argumento em audiência pública na Câmara dos Deputados para apresentar as dificuldades do setor de alimentos com a Reforma Tributária, que aconteceu duas semanas após sua divulgação. João Dornellas, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), que representa empresas como Nestlé e Danone, mencionou o estudo e atacou a classificação NOVA, descredibilizando os pesquisadores que a desenvolveram, sobretudo o termo “ultraprocessados”. Dornellas também afirmou que o imposto seletivo é uma medida ineficaz e apontou a indústria como parte da solução na questão da obesidade e das DCNTs. 

A fala de Dornellas contempla várias táticas utilizadas pelas fabricantes de produtos não saudáveis, para influenciar processos políticos e moldar a opinião pública em relação a questões que interfiram nos interesses corporativos. Algumas das estratégias utilizadas pela indústria são o uso de dados enviesados, embasamento com pseudociência, ataque a pesquisadores e comunidades da saúde pública, exaltação de seus números para a economia e culpabilização do indivíduo por sua saúde, estão descritas em detalhes no Dossiê Big Food

Não foi possível checar as fontes de financiamento da pesquisa. Jornalistas de O Joio e o Trigo tentaram investigar quais eram os patrocinadores, mas obtiveram a seguinte resposta da FGV: "por questões contratuais, a FGV não revela informações sobre patrocínio e ou apoiadores de suas pesquisas e estudos”. Mas é possível identificar uma certa familiaridade do pesquisador com a indústria de refrigerantes, já que, curiosamente, Holland é o principal responsável pelo artigo sobre tributação de bebidas adoçadas e impactos no Brasil publicado também em maio deste ano, o mesmo mês do lançamento do estudo sobre obesidade. Além disso, o economista possui um histórico na defesa da manutenção da Zona Franca de Manaus por meio de artigos e a série de webinars Diálogos Amazônicos, da FGV, em que convida o Victor Bicca Neto, diretor da Coca-Cola Brasil e presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir).

A ampla divulgação do estudo combinada às formações de coalizões com outras entidades industriais, justamente na fase decisiva da reforma tributária, é um demonstrativo de como a indústria se utiliza de diversas ferramentas para evitar políticas regulatórias mais duras, e assim alcançar seus objetivos e fugir da responsabilização sobre os danos causados por seus produtos.

A comunidade de controle do tabaco enfrentou algo semelhante à época em que a medida da Anvisa de regular o uso de aditivos, como os de aromas e sabores, em produtos de tabaco estava sendo criticada pelas empresas fumageiras. O Sinditabaco, Abrasel, Fetag-RS, Stifa, Fetaesc, CNtur solicitaram à FGV para realizar uma análise socioeconômica dos impactos dessa medida no setor fumageiro.  

Ressalta-se que a Fundação é uma reconhecida instituição brasileira na área de Políticas Públicas, Gestão e Administração, e Economia e Finanças e, apesar de seu estudo não ter sido desenvolvido explicitamente para contestar o objeto em questão, seu conteúdo e análises traçaram um cenário catastrófico para a cadeia produtiva do tabaco, caso a regulação dos aditivos fosse aprovada. 

Na época, a análise foi divulgada e usada amplamente por organizações de defesa do setor, deputados estaduais e federais e juristas de renome no Brasil e exterior, contratados pela indústria do tabaco. Contudo, análises feitas pela Organização Pan Americana de Saúde (OPAS), Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health (Estados Unidos), Campaign for Tobacco Free Kids (Estados Unidos) e ACT, e também pelos pesquisadores da área médica/científica para a Universidade McGill, do Canadá, Lencucha e Pontes, demonstraram que a metodologia de estudos citados pela FGV, assim como no estudo atual da Fundação sobre a obesidade,  não estavam de acordo com o rigor científico. Adicionalmente, apontaram para o conflito de interesses, por terem sido produzidos pela indústria do tabaco e/ou aliados e, assim, mais um motivo para serem passíveis de questionamento. E, diferentemente do atual estudo da entidade, não tem autoria o estudo que analisa os efeitos da regulação dos aditivos no Brasil. 

As análises da FGV, de acordo com Lencucha e Pontes, apontam para a ocorrência de uma usual estratégia da indústria: distorcer informações. “(...) através de deturpações de fontes legítimas e representações de fontes ilegítimas. Os tipos de informação utilizados e as formas como a informação é representada não fornecem uma base verossímil para os argumentos. Nesse sentido, a informação é utilizada como uma ferramenta retórica e estratégica para criar incerteza e dúvida”. 

A Fundação Getúlio Vargas, uma entidade de enorme credibilidade, ao emitir estudos como esses, sem rigor científico e revisão de pares, com metodologia questionável e, no caso dos aditivos em cigarros, contratada por empresa interessada, acabam servindo a setores econômicos da sociedade, levando à desinformação e deturpação que têm potencial de influenciar processos políticos e impedir avanços em políticas públicas de saúde que salvam vidas.

 


 

Menos tabaco, mais alimentos

Vitória Moraes e Mariana Pinho

 

Os números da última edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido e divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), em 2022, acenderam o  alerta de que temos 125 milhões de brasileiros vivendo em algum grau de insegurança alimentar, sendo 33 milhões de pessoas passando fome. O cenário é resultado de diferentes fatores, como crise econômica desencadeada pela pandemia e o desmonte de aparelhos e políticas públicas importantes para a garantia da soberania e segurança alimentar, como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), restabelecidos com o novo governo. No entanto, a fome também é uma expressão das desigualdades do país, sobretudo quando pensamos que os grupos sociais historicamente vulneráveis são os mais atingidos: mulheres negras, com baixo grau de escolaridade e os moradores das zonas rurais. 

A fome, especialmente nos países de baixa e média renda, é resultado de um sistema econômico global que leva a uma hegemonia também no sistema alimentar, caracterizado pela agricultura monocultora, de baixa diversidade, uma vez que 66% da produção de culturas agrícolas são representadas por apenas nove espécies de plantas cultivadas para a alimentação, com destaque para a soja,  a cana-de-açúcar e o milho. As commodities, além de influenciarem nos preços, na oferta e na demanda de alimentos devido à especulação no mercado financeiro, são utilizadas como matéria-prima na fabricação de alimentos ultraprocessados, sabidamente prejudiciais à saúde humana. 

Mesmo que na fumicultura a distribuição fundiária seja muito diferente do sistema alimentar - 22,6% das famílias produtoras não têm propriedade e 63,9% são minifundiárias, com propriedades variando de um a 20 hectares, os efeitos produzidos nessa cadeia são semelhantes aos dos ultraprocessados: seus produtos causam adoecimento e mortes prematuras, têm uma carga econômica e social individual e para a sociedade,  e seu modo produtivo prejudica a saúde dos trabalhadores e o meio ambiente. Se não bastasse, 38% das residências de pequenos produtores rurais e agricultores familiares enfrentam a insegurança alimentar no Brasil. Ambas as cadeias produtivas empregam exaustivamente agrotóxicos, com trabalhadores sob condições precárias, fatores que trazem grandes impactos socioambientais, avanço sobre biomas e redução da biodiversidade. 

Existem grandes diferenças entre as narrativas de enfrentamento à fome, dependendo de quem fala. Um estudo analisou que o discurso que sustenta o modelo agroindustrial é incapaz de tocar a raiz dos problemas que afligem a humanidade, uma vez que estão centrados no desenvolvimento tecnológico em detrimento do conhecimento das comunidades. Esta concepção reforça a ideia de que é necessário aumentar a produção de alimentos para resolver o problema, deixando de lado outras questões como o acesso à terra e a mecanização da mão-de-obra, por exemplo. 

Especialistas, organizações da sociedade civil e comunidades tradicionais reivindicam a valorização de outras formas de responder à crise planetária, como a agroecologia, um sistema de produção que leva em consideração o bem-estar coletivo, o conhecimento ancestral, a biodiversidade e as culturas locais. 

Lançado em 2005, e em consonância com essa proposta, o Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco tinha como princípios o desenvolvimento sustentável, segurança alimentar, diversificação produtiva e participação social. Por anos, atuou na qualificação do processo de produção e de desenvolvimento nas áreas de fumicultura, assim como na perspectiva da produção ecológica, mediante a redução do uso de agrotóxicos. Análise encomendada pela Organização Pan-Americana da Saúde apontou que, entre as famílias atendidas pelo Programa, cerca de 70%  desejam diversificar a produção, como uma alternativa capaz de proporcionar meios para elevar a renda e trazer maior segurança no trabalho. 

A Articulação Nacional pela Agroecologia (ANA) também traz a ampliação da produção e dos saberes agroecológicos como estratégia de enfrentamento à fome, à promoção de ambientes mais saudáveis e sustentáveis, além de ser instrumento de justiça social. A reestruturação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e com ele a reinstalação de políticas e aparelhos importantes, como o PAA, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o próprio Consea nacional, são passos importantes para pensar no enfrentamento à fome. A retomada do Programa de Diversificação é o resgate do compromisso do Estado brasileiro em salvaguardar famílias da fumicultura, e também contribui para o enfrentamento à fome. Esta mensagem, apoiada pela ACT, foi aprovada como moção da Conferência Livre Saúde e Agroecologia, a ser apresentada na Conferência Nacional de Saúde e consta da carta enviada ao MDA, com mais de 20 assinaturas.


Foi também ponto de partida para a campanha da ACT para o Dia Mundial sem Tabaco de 2023, “Menos Tabaco, Mais Alimento. Apoie a retomada do Programa de Diversificação” (assista ao vídeo da campanha aqui). Nossa Nota Técnica, escrita pelo economista Valter Palmieri Jr, identificou que no Brasil, terceiro maior produtor global de tabaco, são 350 mil hectares destinados ao cultivo dessa planta, a mesma área que destinamos para cultivar vegetais. A área equivale a três municípios do Rio de Janeiro. A China, líder mundial na produção de fumo, tem uma área 2,7 vezes maior que a nossa, no entanto a relação de terras destinadas à produção de alimentos (vegetais, frutas e arroz) e tabaco é 6 vezes maior que no Brasil. E por esse motivo, entendemos que a indústria do tabaco sufoca a produção de alimentos saudáveis.

 

 

 

 


 

O Império da Embriaguez

Claudio Fernandes & Laura Cury

 

O consumo abusivo de bebidas alcoólicas é um problema de saúde pública que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, inclusive no Brasil. O consumo de álcool está associado a uma série de doenças, incluindo doenças do fígado, hipertensão, diabetes, depressão e câncer, além de estar também relacionado a acidentes de trânsito, violência pessoal e interpessoal e outros comportamentos perigosos. Uma maneira eficaz de reduzir o consumo de bebidas alcoólicas é através do aumento de preços, tema em discussão na corrente Reforma Tributária.

Além dos fatores de saúde, há também o que vem sendo denominado de “determinantes comerciais da saúde”, com o aval da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do o Banco Mundial, que são atividades normalizadas para criar estímulo ao consumo de determinados produtos, mesmo que eles sejam prejudiciais e provoquem efeitos negativos à saúde, ao meio ambiente ou à sociedade como um todo. A indústria de bebidas alcoólicas, por exemplo, investe fortemente em medidas como publicidade, marketing e preços baixos, visando o aumento de vendas e do consumo de seus produtos, que são capazes de levar à dependência, doenças e até mesmo à morte, especialmente entre as populações jovens e mais vulneráveis. 

Diversos determinantes comerciais e sociais da saúde são discutidos no relatório Álcool, Obstáculo para o Desenvolvimento Sustentável, da ONG Movendi Internacional. O documento analisa o consumo de bebida alcoólica desde seu aspecto individual e psicológico até seu poderoso enraizamento econômico e seus galhos de oligopólio. O relatório demonstra ainda como a indústria de bebida alcoólica constitui um império global em posse de tremendo capital financeiro e cultural com influência incontestável sobre a vida de bilhões de pessoas no mundo todo. 

 

 

Embora os efeitos do álcool no corpo  humano sejam conhecidos há milênios e novos estudos mostrem a associação a outras doenças, a escala industrial da produção e distribuição de bebidas alcoólicas confere nova e complicada dimensão à questão de seu consumo. Em nossa sociedade contemporânea, comemorar envolve embriaguez. Socializar envolve embriaguez. O patrocínio do esporte envolve embriaguez, o financiamento da cultura, idem. Fica a noção de que a alegria e a conquista estão diretamente associadas ao consumo de álcool. Estamos tão acostumados a esse fato que tentativas de regulação desse setor são encaradas com antipatia e explosões de irracionalismo. 

De acordo com levantamento da Vital Strategies a partir de dados extraídos do Sistemas de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, o aumento no consumo de bebidas alcoólicas durante a pandemia levou, na cidade de São Paulo, por exemplo, a um crescimento de 150% de mortes por transtornos mentais ou comportamentais. No estado, o salto foi de 64,5% e no país de 18,4%.  Já a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019,  mostrou que quase metade dos adolescentes já consumiu bebida alcoólica. Vale destacar que, para fins da legislação que controla a publicidade e propaganda de bebidas alcoólicas, cerveja, ices e outras bebidas com menor teor alcoólico não se enquadram na categoria de álcool. Na prática, isso as isenta de qualquer regulação apropriada dessas ações.

Tributação seletiva é um avanço para reduzir consumo abusivo de bebidas alcoólicas 

A tributação seletiva sobre todas as formas de bebidas alcoólicas é comprovada por estudos do Banco Mundial, ratificados pela OMS, como a medida mais custo-efetiva para reduzir a prevalência do seu consumo de forma danosa. Sua adoção ainda seria capaz de arrecadar recursos para ações de prevenção e tratamento de saúde, financiando importante pilar do desenvolvimento sustentável. Em um momento em que a ministra da Saúde, Nísia Trindade, reforça o comprometimento do governo federal com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas, o caminho da tributação seletiva do álcool é um passo necessário para comprovar tal compromisso. As discussões em andamento sobre a reforma tributária possibilitam a aprovação de medidas concretas nesse sentido. 

E antes que haja o retorno do argumento de que haveria desemprego na indústria, lembremos das horas de produtividade desperdiçadas por ressaca, doença, dos acidentes de trânsito, das violências e das milhares de mortes que poderiam ser evitadas todos os anos, se houvesse um consumo de álcool mais consciente e reduzido. Portanto, para que o respeito a essa histórica substância psicotrópica seja recuperado, honestidade e controle, que podem ser promovidos por meio da tributação majorada, são o caminho adequado para a maturidade, tanto social quanto individual, na trilha do desenvolvimento sustentável.

 


 

MonitorACT

Revisão e edição por Anna Monteiro

Produção gráfica de Ronieri Gomes

 

Equipe de monitoramento

Anna Monteiro

Bruna Hassan

Denise Simões

Fabiana Fregona

Laura Cury

Mariana Pinho

Marília Albiero

Victória Rabetim

Vitória Moraes

 

Autor convidado: Claudio Fernandes, Economista Sênior, GT Agenda 2030




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